Saltar para o conteúdo

Psicólogo revela como a expressão criativa ajuda a integrar memórias emocionais fragmentadas.

Mulher a pintar numa tela, num estúdio de arte, com luz suave entrando pela janela.

Outras coisas estilhaçam-se - sons, clarões, um cheiro que não se explica. Uma psicóloga que conheci disse que a expressão criativa pode fazer com que esses fragmentos comecem a falar uns com os outros. Não como um milagre. Como uma prática.

As luzes estavam baixas, o fim da tarde a deslizar pelo chão do estúdio. Uma mulher estava de pé junto ao cavalete, o pincel a tremer só um pouco, a pintar aquilo a que chamava “o ruído por trás das minhas costelas”. Não começou com palavras, porque as palavras nunca ficavam; dispersavam-se assim que tocavam o ar. Por isso, pintou o corredor onde tudo ficava frio, depois uma porta, depois um pequeno quadrado vermelho que não conseguia nomear. Vi a respiração dela abrandar em pequenos degraus, cada pincelada a encontrar a sua vizinha. A sala ficou silenciosa, como um pensamento finalmente a chegar. Ela olhou para o que tinha feito e sussurrou: “Foi para ali que a minha voz foi.” Algo real tinha-se reorganizado. Depois, algo muda.

Como os atos criativos cosem memórias dispersas numa história

Quando uma experiência nos avassala, o cérebro nem sempre a arquiva de forma arrumada. Sensações e emoções podem ficar separadas do tempo e do contexto, como azulejos espalhados sem argamassa. A expressão criativa oferece uma prateleira diferente para pousar essas peças, uma forma de deixar o corpo falar primeiro enquanto a mente escuta. Tinta, melodia, barro, movimento - cada meio dá forma a sentimentos que resistem a frases certinhas.

Na prática, isto parece comum e corajoso. Uma cliente chamada Lena começou por rabiscar círculos todas as manhãs, sem plano, só com a respiração. No quarto dia, desenhou uma janela de que se tinha esquecido, e com ela veio o cheiro da chuva. Escreveu três linhas sobre lã molhada e a palavra “espera”. Esse pequeno poema bastou para abrir uma conversa gentil consigo mesma. A investigação apoia este tipo de mudança: o trabalho de James Pennebaker mostra que 15–20 minutos de escrita expressiva, ao longo de alguns dias, pode reduzir a ruminação e melhorar o humor meses mais tarde. A coerência cresce linha a linha.

O mecanismo não é magia; é integração. Durante o stress, a amígdala pode ficar inundada enquanto o hipocampo tem dificuldade em “carimbar” os acontecimentos no tempo. A arte e a escrita voltam a envolver redes que ligam sensação a narrativa - unindo imagem, sinal corporal e linguagem. Demonstrou-se que rotular emoções (“triste”, “apertado”, “assustado”) acalma o alarme límbico e recruta regiões pré-frontais que organizam a experiência. Juntar palavras a imagens ativa a codificação dupla: duas vias de entrada, duas vias de saída. O resultado é menos um memoir perfeito do que um mapa: “Isto foi o que senti, aqui foi onde viveu, assim foi como se moveu.”

O que experimentar quando o seu passado parece um conjunto de instantâneos dispersos

Comece pequeno e rítmico. Defina uma janela de 10–20 minutos e escolha um modo - caneta, tinta, teclas do piano, as notas de voz do telemóvel. Comece pelo corpo: nomeie três sensações, desenhe as formas delas, ou murmure a energia delas. Depois, acrescente um detalhe de uma memória que continua a bater à porta - um cheiro, uma cor, uma linha de diálogo - sem procurar a cena inteira. Termine escrevendo uma única frase que comece por “Agora sei…” Não tem de ser profunda. Tem de ser sua.

Proteja o seu ritmo. Todos já tivemos aquele momento em que uma memória entra como uma onda e nos tira o chão. Use o que os terapeutas chamam titulação: toque na coisa difícil e depois volte a algo neutro - a sua respiração, um objeto estável, uma canção em que confia. Alterne durante alguns minutos e, depois, feche com cuidado. Mantenha a porta aberta apenas o suficiente para que a sala se mantenha firme. Sejamos honestos: ninguém faz isto todos os dias. Duas vezes por semana pode mudar a textura de um mês.

Esteja atento às armadilhas comuns e dê-lhes nomes. O perfeccionismo vai tentar transformar isto numa performance; não é. Se sentir que está a acelerar, abrande a mão e encurte as linhas.

“A criatividade não tem a ver com fazer algo bonito”, disse-me a psicóloga. “Tem a ver com fazer algo suficientemente coerente para o seu sistema nervoso reconhecer.”

Use esta verificação rápida enquanto trabalha:

  • Consigo sentir os meus pés ou o meu assento agora?
  • A minha respiração está acessível sem esforço?
  • Sei em que sala estou e que horas são?
  • Se não, faça uma pausa e oriente-se - nomeie cinco coisas que vê.

Procure um passo de granularidade emocional em vez de heroísmos.

O que muda quando as histórias se tornam inteiras

Acontece algo curioso quando os fragmentos começam a encontrar-se. A memória não desaparece; amolece nas margens e encontra um lugar na prateleira. Pode notar escolhas diferentes em pequenos momentos - como responde a uma mensagem, quando sai para a rua, o que mantém na secretária. Rituais criativos constroem uma ponte entre o que o seu corpo sabia e o que a sua mente agora consegue sustentar. O artista e o arquivista tornam-se a mesma pessoa durante alguns minutos por dia.

Ponto-chave Detalhe Interesse para o leitor
A expressão criativa integra Associa sensação a símbolo, ligando imagem, movimento e linguagem Transforma sentimentos “estáticos” numa história que consegue navegar
Uma prática pequena e rítmica funciona 10–20 minutos de escrita ou arte, algumas vezes por semana Rotina realista que se acumula ao longo do tempo
Segurança e ritmo importam Titulação, orientação e um contentor seguro Reduz a sobrecarga e constrói confiança consigo mesmo

FAQ:

  • Como é que a arte ajuda com memórias que parecem “enevoadas” ou fora de ordem? Os atos criativos dão forma primeiro às sensações e emoções e, depois, convidam as palavras. Ao envolver vários sistemas - imagética, movimento motor e linguagem - ajuda o cérebro a ligar fragmentos numa linha temporal.
  • Isto é o mesmo que terapia? Não. É uma prática de suporte. Terapeutas podem incorporar ferramentas semelhantes, mas a terapia guiada acrescenta contenção e competência clínica. Se as memórias parecerem avassaladoras ou inseguras, trabalhe com um profissional.
  • E se eu “não for criativo”? Criatividade aqui significa capacidade de experimentar. Rabiscos contam. Cantarolar conta. Uma lista de cheiros conta. O objetivo é coerência, não uma exposição.
  • Com que frequência devo fazê-lo? Curto e constante vence longo e raro. Duas ou três sessões por semana podem mudar o humor e a clareza. Se falhar uma semana, não falhou; é humano.
  • Que ciência sustenta isto? A investigação sobre escrita expressiva mostra benefícios duradouros para o humor e a construção de sentido. A rotulagem do afeto reduz a reatividade límbica. Juntar palavras e imagens tira partido da reconsolidação da memória e da codificação dupla, o que pode reorganizar a forma como uma memória é armazenada.

Comentários (0)

Ainda não há comentários. Seja o primeiro!

Deixar um comentário