Novas imagens e amostras desafiam o que os manuais dizem sobre os limites da vida.
Em 2024, uma missão tripulada conduziu o submersível Fendouzhe até à Fossa de Kuril-Kamchatka e cartografou setores entre os 9.500 e os 10.000 metros. A equipa documentou comunidades florescentes alimentadas não pela luz do sol, mas pela química que escapa do fundo do mar.
Onde a luz se esgota
Para além dos 6.000 metros, o oceano entra na zona hadal, um reino sem dia nem crepúsculo. A pressão aproxima-se dos 1.000 bares. As temperaturas mantêm-se pouco acima do ponto de congelação. O oxigénio pode escassear. A água torna-se mais imóvel e o fundo do mar transforma-se numa planície de sedimento fino e rocha fraturada. Durante décadas, os biólogos trataram estas profundezas como quase vazias. Os novos dados de campo contam uma história diferente.
A cerca de 9.500 a quase 10.000 metros, os cientistas encontraram densas comunidades de animais ancoradas em locais de exsudação ricos em metano e sulfureto.
Florestas de tubos numa planície à meia-noite
Os registos das câmaras mostraram montículos de lodo pontuados por altas colónias de tubos. Estes vermes, do grupo dos siboglinídeos, vivem sem estômago. No interior dos seus tecidos, bactérias simbióticas convertem energia química em matéria orgânica. Esse motor metabólico sustenta os vermes e liberta energia para a cadeia alimentar mais ampla.
Perto dali, bivalves acumulavam-se no sedimento, alguns semi-enterrados onde surgem fluidos. Anfípodes patrulhavam as margens, enquanto pepinos-do-mar pastavam em filmes bacterianos. O cenário parecia ordenado, quase ajardinado, com zonas bem definidas moldadas pelo modo como os fluidos jorram e se dispersam sob pressão.
- Intervalo de profundidade registado: 9.500–10.000 metros em segmentos da fossa de Kuril.
- Fonte de energia: quimiossíntese baseada em metano e sulfureto de hidrogénio.
- Principais engenheiros: vermes tubícolas siboglinídeos com bactérias simbióticas.
- Outros habitantes: bivalves, anfípodes e holotúrias adaptados à pressão extrema.
A geologia que alimenta a vida
A fossa de Kuril marca o local onde a Placa do Pacífico desliza sob a Placa de Okhotsk. A subducção fratura a crusta e faz subir fluidos por falhas e camadas de sedimentos. Esses fluidos transportam metano, sulfureto e minerais que os microrganismos conseguem usar como fonte de energia. Trabalhos geoquímicos feitos a bordo dos navios indicam que grande parte do metano é de origem microbiana, produzido quando certas arqueias reduzem dióxido de carbono no fundo do mar.
Essa economia microbiana sustenta toda uma comunidade. Os vermes trocam o trato digestivo por trocas químicas com os seus simbiontes. Os bivalves albergam as suas próprias bactérias. Necrófagos e pastadores consomem resíduos e tecidos mortos. A geologia da fossa define o “menu”; a biologia organiza a “mesa”.
Uma rede que pode estender-se por milhares de quilómetros
As linhas de prospeção e as amostragens sugerem que estes habitats se repetem em vários segmentos da fossa e podem estender-se por cerca de 2.500 quilómetros. Formam um mosaico, não um recife contínuo, com cada "mancha" ligada à circulação local de fluidos. Quando as falhas abrem, os fluidos sobem. Quando os sedimentos vedam, um local pode desaparecer. Estas comunidades batem ao ritmo tectónico do subsolo.
Onde o fundo do mar liberta metano e sulfureto, a vida constrói alimento a partir de química bruta — sem necessidade de luz solar.
Repensar a fronteira da vida
A fotossíntese construiu a biosfera moderna à superfície. Aqui em baixo, a quimiossíntese escreve outro livro de regras. Os microrganismos colhem energia de reações redox, e os animais aproveitam essa linha. Este modelo expande o leque de habitats possíveis, na Terra e não só. Se a biologia consegue funcionar com gradientes químicos sob 1.000 bares, poderá também encontrar terreno nos oceanos profundos de luas geladas ou nas fraturas da crusta de Marte.
| Ambiente | Luz | Pressão | Energia primária | Produtores típicos |
| Plataforma costeira | Alta | 1–10 bares | Luz solar | Fitoplâncton, algas |
| Fontes hidrotermais oceânicas | Nenhuma | 200–400 bares | Fluidos ricos em sulfureto | Bactérias quimiossintéticas |
| Exsudações de metano hadal | Nenhuma | Até ~1.000 bares | Metano e sulfureto | Micróbios de exsudação, simbiontes |
Porque é isto relevante agora
Os países estão a ponderar a extração de minerais nas profundezas do mar. A maioria das propostas incide sobre planícies abissais, não fossas, mas as perturbações não respeitam fronteiras. As plumas de sedimentos podem espalhar-se. O ruído pode viajar longe em água fria e densa. Perfurações e dragagens podem alterar os caminhos subterrâneos que alimentam as exsudações. Sem referências sólidas, os danos podem passar despercebidos até as colónias colapsarem.
Estes locais não são estéreis. Dependem de química lenta e redes delicadas de fluidos, que a indústria pesada pode destruir durante gerações.
Por detrás das câmaras e dos testemunhos
A missão combinou mergulhos tripulados, amostras de testemunhos, sensores in situ e imagem. Os investigadores registaram temperatura e parâmetros químicos na interface sedimento-água. Amostras de gás revelaram sinais compatíveis com a metanogénese microbiana. Ramos de imagem mediram a densidade das colónias e a mistura de espécies ao longo das fronteiras das exsudações.
O método é importante porque o contexto importa. Uma imagem isolada pode induzir em erro. Sobrepor imagens com medições de fluxo de fluidos, química da água intersticial e estrutura dos sedimentos conta uma história mais completa sobre como estas comunidades se montam e persistem.
O que ainda não sabemos
Os cientistas continuam sem dados em série temporal. Estes locais florescem após eventos sísmicos? Quão rapidamente colonizam os vermes e bivalves uma nova exsudação? As larvas deslocam-se ao longo da fossa como “saltos de pedra” ou permanecem isoladas? Mapas de correntes mais detalhados, sensores de longo prazo e mergulhos repetidos irão testar estas ideias.
Contexto extra para ampliar a perspetiva
Quimiossíntese, de forma simples, é construir açúcares a partir do carbono usando energia química em vez da luz do sol. Em ambientes de exsudação, os microrganismos oxidam metano ou sulfureto, capturam essa energia e fixam o dióxido de carbono em biomassa. Os animais entram neste processo ao alojar esses microrganismos em órgãos especializados. É uma aliança compacta e eficiente onde a luz nunca chega.
Para uma imagem mental, imagine uma bateria lenta e estável debaixo do fundo do mar. As falhas e camadas porosas funcionam como fios. Onde a “corrente” chega à superfície, o circuito da vida liga-se. Se entortar ou cortar esses fios — por remoção ou compactação de sedimentos — o circuito oscila ou apaga-se.
Há também um lado climático. Os microrganismos das exsudações podem consumir o metano antes que alcance a coluna de água. Essa oxidação atua como filtro biológico. Mapear estes filtros ajuda a estimar quanto metano permanece retido nos sedimentos versus quanto escapa. Pelo contrário, uma perturbação súbita pode libertar metano mais rápido do que os microrganismos o processam.
A biotecnologia pode também beneficiar. As proteínas que funcionam a temperaturas quase abaixo de zero e a pressões esmagadoras podem inspirar novos catalisadores. Muitas espécies das profundezas acumulam moléculas protetoras de pressão que estabilizam enzimas. Estudá-las pode conduzir a aditivos para a medicina e a indústria.
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